quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Vinho de Goiás

Vinho de Goiás Em Cocalzinho, a 40 quilômetros de Pirenópolis, Marcelo deNo Cerrado tem pequi e guariroba de sobra. Outros frutos, como a mangaba, e até uma castanha diferente, chamada de baru, também se encontram com alguma procura. Mas de uvas viníferas nunca se tinha ouvido falar pelas bandas goianas. Menos ainda que alguém produzisse vinhos tintos finos com elas. Isso até o médico otorrinolaringologista Marcelo de Sousa apostar em uma ousadia antiga e criar a Pireneus Vinhos e Vinhedos. O resultado, batizado de terroir da Serra dos Pireneus, tem sido degustado com satisfação pelas mesas brasileiras. “A produção de vinhos na região tropical de Cerrado de altitude é a grande novidade do mercado mundial. Temos as mesmas condições climáticas necessárias para que regiões tradicionalmente produtoras, como o Chile, a Argentina e a Califórnia, possam fazer grandes safras”, explica. Ele se refere à temperatura e ao clima seco no inverno, na fase de amadurecimento dos frutos. Assim como nesses lugares, a amplitude térmica do local é grande – durante o dia, chega aos 30 °C e à noite cai para 10 °C – e quase não chove de maio a agosto. Temperaturas que são amplificadas ainda mais pelo fato de os vinhedos da pequena vinícola estarem em meio a um vale de 950 metros de altitude. Foi essa constatação que primeiro despertou o faro empreendedor do médico. O incentivo que faltava veio de uma declaração feita pela crítica inglesa Jancis Robinson durante uma visita ao Brasil, em 2003. Segundo ela, o vinho feito no Vale do São Francisco possivelmente era o único com condições de ser exportado porque se tratava de um produto novo e de produção de uma área diferente. “Isso me chamou a atenção porque temos o mesmo contexto do Nordeste, mas temos características mais próximas do que acontece nos países com viticultura reconhecida internacionalmente”, revela. Inspiração O primeiro passo do projeto foi dado em 2004. Enquanto procurava terrenos para instalar as videiras, Sousa deparou com um vale que o remeteu ao que o ator Keanu Reeves avistou numa cena do filme Caminhando nas nuvens, que se passa na região de Napa Valley, tradicional produtora de vinhos na Califórnia. Não teve dúvidas: uma área de 40 hectares, no município de Cocalzinho de Goiás, foi adquirida e transformou-se no berço dos mais elogiados rótulos elaborados até hoje em Goiás. Além da questão climática e do solo, pesou a favor do negócio o fato de a fazenda estar a cerca de 40 quilômetros da histórica Pirenópolis, numa região com potencial para o desenvolvimento do enoturismo. Um lote de 1.000 mudas de quatro variedades – syrah, tempranillo, barbera e sangiovese –, todas importadas da Itália, foi plantado em 2005. São 80 fileiras de espaldeiras com 200 metros de comprimento, totalizando 3,5 hectares de “um grande laboratório a céu aberto”. A produção média total é de 7 toneladas, quantidade insatisfatória, mas compreensível, poois as plantas ainda estão em fase de formação. O objetivo é chegar rapidamente à marca de 5 toneladas por hectare. Zona versátil Uma característica importante da produção em áreas tropicais é que a planta está sempre em atividade, diferentemente do que acontece em clima temperado, em que a videira entra em hibernação no período do inverno. As vantagens são manejo permanente da planta e produção no momento desejado. A possibilidade de alcançar produtos com um teor alcoólico superior à média brasileira – que fica em torno de 13%, enquanto em Goiás atinge-se 14,5% –, em razão da amplitude térmica na finalização da maturação das uvas, também é um diferencial. As noites frias favorecem, ainda, uma coloração muito intensa, e todo esse contexto permite que casca, semente e polpa amadureçam plenamente. Um fato curioso é que, mesmo sendo no Hemisfério Sul, a safra da Pireneus acontece em ciclo invertido, ou seja, na mesma época em que ocorre nos vinhedos da metade norte do planeta. A tendência já é padrão na indústria vinícola da Índia, que também planeja o seu cultivo para os meses de inverno, com tempo mais ameno e seco. “Além de ser uma excelente região para produzir vinho de qualidade, pode-se fazer algumas técnicas de colheita, invertendo o ciclo de produção das uvas e assim colhê-las no tempo certo e com a melhor sanidade”, complementa o sommelier do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin) Arlindo Menoncin. A dedicação e o cuidado com todos os detalhes seguem pelos 15 quilômetros que separam as vinhas do galpão alugado onde funciona a cantina da empresa, no centro da pacata Cocalzinho de Goiás. É lá que o “doutor” utiliza todo o seu conhecimento de sommelier profissional para realizar os “processos gentis” de maceração, fermentação e maturação do líquido, realizada em tanques de inox e em barricas de carvalho francês e americano. O ritual todo pode levar mais de um ano, mas é esse capricho que garante um produto final com bastante tanino, estrutura e intensidade de fruta, semelhante ao alcançado em áreas de deserto. “Da forma que eu faço, leva 40 dias, desde que a uva entra até sair vinho. Se fosse diferente, levaria de sete a dez dias. É cinco vezes mais tempo que o tradicional, o que permite uma bebida mais extraída”, ressalta. A suspeita de que estava no rumo das grandes regiões vinícolas do mundo veio assim que ele conseguiu fabricar o primeiro vinho, em 2008. A certeza levou apenas quatro meses, após o lançamento comercial de sua marca, para chegar. O rótulo Bandeiras concorreu com as jovens promessas do setor brasileiro durante a quinta edição da Vinum Brasilis 2012 e ficou com a segunda melhor pontuação entre os tintos. Outro destaque da Pireneus que também tem agradado nas rodas de degustação chama-se Intrépido. Ambos já foram colocados em comparações às cegas com famosos concorrentes italianos e espanhóis e não fizeram feio. “São dois grandes vinhos. O Bandeiras é mais potente, com aromas mais complexos e bom equilíbrio. Em boca, possui taninos e acidez marcantes e bem equilibrados. Já o Intrépido é um vinho mais moderno, com ótima presença de frutas vermelhas no aroma e com taninos maduros, potentes e equilibrados”, atesta Menoncin. Mesmo com uma produção pequena – em torno de 4 mil garrafas a cada safra –, os lançamentos já foram incluídos nas cartas de restaurantes de Brasília e Goiânia, foco inicial das vendas. Encomendas também podem ser feitas por e-mail e telefone. O valor médio é de R$ 70, no varejo. “Nossos vinhos, nessa primeira arrancada, já demonstraram força e os que virão à frente vão mostrar que isso é uma coisa consistente e que temos condições de estar entre os grandes nomes produzidos no Brasil e na América do Sul”, diz Sousa. Depois do trabalho inicial de divulgação, o plano é expandir. A partir de 2013, a meta principal é triplicar a área plantada e, até 2014, ter dez vezes mais hectares com frutos. A expectativa é que a quantidade engarrafada por safra seja dobrada, chegando a 8 mil unidades. Mas, até lá, o especialista em ouvidos, nariz e garganta terá dois grandes desafios pela frente: conseguir parceiros para a construção de uma vinícola modelo, com investimentos em uma planta industrial própria e que possa receber turistas. Pelos cálculos dele, para cada hectare, precisa ser investido algo como R$ 400 mil. O segundo, bem mais complicado, será conciliar o tempo que sobra da dedicação à viticultura e os pacientes que esperam por outro tipo de cuidado.

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