quinta-feira, 29 de junho de 2017

Alternativa para possíveis crises energéticas, cogeração com bagaço da cana-de-açúcar chega a 30 anos



O ano era 1987 e o empresário Jairo Balbo, de Sertãozinho (SP), só utilizava a energia gerada pela queima do bagaço da cana-de-açúcar para manter funcionando as caldeiras da Usina São Francisco em caso de emergência


Trinta anos depois, a indústria dele, assim como outras quase 200 do setor em todo o país, não só utiliza a biomassa como principal fonte de energia na maior parte do ano, como também a comercializa.
"Aquele foi o melhor contrato que fiz até hoje. Naquele primeiro momento quando eu tinha [energia] eu fornecia, quando eu não tinha eu recebia", descreve o usineiro do interior de São Paulo.
Uma geração que, com outras biomassas, responde por 8% do que se consome em território nacional e que poderia abastecer uma cidade de 11 milhões de unidades residenciais, se levadas em conta todas as unidades processadoras de biomassa do país. Uma produção que já movimentou a cifra de R$ 72,4 bilhões em 2013, segundo um dos únicos levantamentos feitos pela União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Única).
Diante da necessidade de se recorrer a energias renováveis, defendidas pelo Acordo do Clima de Paris contra o aquecimento global, a cogeração a partir da cana apresenta-se como uma alternativa sustentável complementar à hídrica e uma solução futura contra apagões no período da estiagem, mas está aquém de sua capacidade.
Segundo profissionais do segmento, ela poderia ser sete vezes maior, não fossem questões como os custos de renovação de equipamentos, chamado de retrofit, o baixo retorno da negociação da energia e a infraestrutura necessária para interligar as usinas à rede de distribuição.
"O que o setor ainda tem como pauta é a necessidade de uma política setorial de longo prazo não só para a bioeletricidade, mas também para o etanol, para identificarmos qual é o papel dele na matriz enérgica do país", afirma Zilmar José Souza, gerente de bioeletricidade da Unica.
Usinas pioneiras
O potencial termoelétrico da biomassa não é inédito. Além de ter acompanhado a rotina das unidades produtoras, como fonte de energia para manutenção de suas atividades, países como Ilhas Maurício, Cuba e Estados Unidos têm diferentes políticas implementadas nesse sentido.
"O processo já vem desde o século passado. O setor sempre buscou autossuficiência em energia térmica e elétrica através do uso do bagaço das caldeiras", diz Souza.
Mas foi nos anos 1980 que as usinas brasileiras começaram a se mobilizar para fazer com que o excedente da eletricidade gerada fosse comercializado. As plantas pioneiras, segundo a Única, foram três unidades na região de Ribeirão Preto: a São Francisco, em Sertãozinho, a São Martinho, em Pradópolis (SP), e a Vale do Rosário, também em Sertãozinho.
Ideia que, com um investimento hoje estimado em R$ 1 milhão, e equivalente ao retorno de meia safra, Jairo Balbo concretizou na São Francisco a partir de maio daquele mesmo ano e que funciona dentro de uma lógica simples:
A partir do vapor de alta pressão gerado pela queima do bagaço, giram-se as turbinas, mecânica que coloca para funcionar moendas ou que pode ser conjugada em um gerador de energia elétrica. Como nem toda a energia produzida era utilizada, o usineiro decidiu colocá-la à venda.
"Quando eu tinha, eu fornecia. Quando eu não tinha eu recebia. Existia um medo muito grande que nós pudéssemos causar um problema na rede por estar entrando, mas não causou problema algum e foi um sucesso a interligação. Fiquei interligado no sistema de tal forma que se acontecesse alguma coisa em Itaipu nós sentíamos aqui na usina, entendeu?", afirma Balbo.
Nos primeiros meses, dos 3 megawatts-hora (MWh) produzidos pela usina em Sertãozinho, 86,66% - ou seja, 2,6 - eram suficientes para manter a unidade em funcionamento, enquanto os 13,33% restantes eram comercializados.
Três décadas depois, não só a cogeração total dele se elevou, ficando sete vezes maior, quanto o nível de "exportação" para a rede subiu. Dos 21 Mwh processados, 15 (71,42%) são utilizados internamente, mas em torno de 6 - algo em torno de 28,5% - são negociados e convertidos em até 4% do faturamento.
"Você tem que fazer investimento baseado no excedente vendido e o que fica no caixa não tira nenhuma usina do buraco. O carro-chefe é açúcar e álcool, mas é um produto que está disponível e de interesse das usinas e do Brasil", afirma o usineiro, que detém outra indústria em Sertãozinho, a Santo Antônio, e ações na Usina Uberaba, em Minas Gerais.
Alternativa energética
O exemplo da Usina São Francisco se multiplicou e virou realidade em 180 usinas, quase a metade das 398 existentes em todo o país, que exportaram, em 2016, 21,2 bilhões de quilowatts/hora para o Sistema Interligado Nacional (SIN), o equivalente a 5% da energia consumida no Brasil, segundo a Única.
Dentre as biomassas existentes, o que inclui casca de arroz e capim elefante, o bagaço da cana-de-açúcar responde por 99% da capacidade de geração de energia elétrica, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Mais de 90% dessa geração se concentra no centro-sul do país, com destaque para São Paulo, que responde pela metade da cogeração do setor, com 11,8 gigawatts/hora (gwh). O que poupa em média o uso de 15% da água dos reservatórios das hidrelétricas na região.
Essa eletricidade é 100% garantida na safra, quando as usinas processam a cana para a produção de álcool e açúcar e o bagaço é abundante - uma tonelada de cana, da qual se aproveitam 250 quilos do bagaço, resulta em média em 80,10kwh. Nos demais meses, a maior parte das usinas ou utiliza estoques próprios da matéria-prima para a queima ou compra energia elétrica da rede.
"Normalmente a usina para entre três e quatro meses no final do ano. Nesse período em que ela não está moendo, como o consumo é muito inferior, você acaba tendo um contrato com a concessionária local", explica Raul Guaragna, diretor de operações agroindustriais do Grupo Tereos, com sete usinas em território nacional.
Mas é justamente nessa particularidade que está o maior potencial da bioenergia. O período em que o bagaço mais tem condições de cogerar é o mesmo marcado pela estiagem e seu consequente impacto negativo sobre o funcionamento das hidrelétricas.
"Ela é a fonte mais complementar com a híbrida, não é considerada pelo setor elétrico, pelo operador, uma fonte intermitente, como a eólica e a solar. A gente é sazonal, mas uma vez iniciada com a safra é muito regular, para o operador é uma energia muito bem vinda", diz o gerente da Única.
Entraves
Trinta anos depois das primeiras experiências de cogeração, a bioeletricidade da cana ainda não é maioria entre as usinas. Em parte, porque custa caro reformar parques tecnológicos e gastar com troca de caldeiras de baixa por alta pressão.
Investimentos que, segundo a Única, não encontram compensação nos leilões de energia feitos dentro do país, sobretudo entre as indústrias de menor porte. "Pode custar R$ 300 milhões, mas varia de caso a caso. É um investimento vultoso, uma decisão que tem que estar muito bem embasada", afirma Souza.
Em torno de 20% desses custos podem se concentrar no barramento da usina, geralmente afastada dos centros urbanos, até o ponto de conexão com a concessionária de energia elétrica, que controla a rede de distribuição, segundo Souza. "Pode estar a 40, 50 quilômetros de distância. Todo esse custo quem tem que pagar é a usina, dependendo da distância que você está é um custo que pode inviabilizar o projeto."
Grupo Tereos: aporte de R$ 600 milhões
Detentor de sete usinas no oeste paulista, o Grupo Tereos investiu R$ 500 milhões para iniciar, a partir do zero, sua cogeração de eletricidade a partir do bagaço da cana há 15 anos e pretende investir mais R$ 100 milhões até 2018 para ampliar sua capacidade de produção elétrica, afirma Guaragna.
Aportes que, segundo o diretor de operações agroindustriais, consistem de três eixos básicos de investimento: as caldeiras de alta pressão, ou seja, que geram vapor entre 67 e 100 bares, o turbo gerador de energia elétrica, que converte esse vapor em eletricidade, e a linha de distribuição até a rede.
"Isso custa muito dinheiro. O setor já é intensivo em capital. Para fazer investimento desse tipo, não só pelo tamanho, mas pela complexidade. Tem muitos grupos que não necessariamente têm a capacidade técnica de contar uma assessoria interna para desenhar esses equipamentos de uma maneira correta. O outro fato é que precisa ter um leilão de energia elétrica incentivada, que permita às empresas que estão fazendo investimento que tenham retorno sobre esse investimento", defende.
De todas as unidades da Tereos, autossuficientes durante a safra e localizadas em municípios como Olímpia (SP), Tanabi (SP) e Sertãozinho (SP), seis exportam 1.080 gigawatts por ano safra de energia excedente para a rede, dez vezes mais se comparado ao início das operações em 2013.
"O que a gente exporta de energia dá pra 1,5 milhão de habitantes, considerando o consumo residencial. É mais do que Ribeirão Preto, São José do Rio preto e Franca consomem juntas", afirma Guaragna.
Atividade que gera um retorno financeiro equivalente a 8% do faturamento do grupo, segundo o diretor. Ao mesmo tempo, a autossuficiência energética representa poupar aproximadamente R$ 90 milhões que seriam gastos por ano com a compra de energia elétrica fornecida convencionalmente.
"Se as usinas não tivessem caldeiras e não cogerassem energia, indo por essa premissa, nós teríamos que comprar energia elétrica do grid. Considerando um contrato típico, a gente estaria gastando algo em torno de R$ 90 milhões por safra no grupo."
Créditos de energia
A energia elétrica exportada pelas usinas para a rede aberta, o linhão, percorre o caminho mais rápido até seu consumo final, mas os créditos gerados pela atividade podem ser negociados entre unidades geradoras e consumidoras em localidades distintas por meio do mercado livre de energia.
Nesse caso, os valores são compensados na fatura mensal de energia elétrica entregue pela concessionária.
Essa troca hoje é regulamentada pelo Selo Energia Verde, certificação criada por entidades ligadas ao setor sucroenergético - Única, Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel) -, e que atualmente reúne 55 usinas geradoras em todo o país.
"Investimento alto, como todo investimento na indústria, o problema era mais a indefinição. A gente não tinha noção de como ia funcionar. Tivemos até várias críticas dentro do pessoal de operação, com medo desse investimento, porque a energia elétrica da biomassa estava começando. Já existia havia muitos anos o autoconsumo, mas a exportação era algo novo", relata o empresário Antônio Tonielo, detentor das usinas Viralcool I e II, credenciadas pelo selo.
Existentes há 32 anos, as plantas desde sempre foram autossuficientes, mas começaram a exportar a partir de 2002. Na época, eram 3 mwh, 13 vezes menos do que hoje - 40mwh. Essa evolução, que se deve a investimentos em caldeiras, geradores e tecnologias para otimizar a produção de vapor, por exemplo, também se traduziu no faturamento.
Hoje, a cogeração, que antes representava 1%, responde por 8%. "Unidades como a Virálcool mantêm uma cidade como Ribeirão Preto."
Conta mais barata
Também parte do programa Selo Energia Verde, a Cooperativa dos Plantadores de Cana do Oeste do Estado (Copercana), em Sertãozinho, foi a primeira empresa certificada como uma unidade consumidora.
Hoje, 80% do que ela consome de energia em suas sete unidades - a matriz, a planta beneficiadora de grãos e cinco supermercados - vem do mercado livre de energia, em contraponto ao mercado cativo, o ligado às concessionárias, afirma Tiago Risponchiado Zanfrônio, encarregado de controladoria da Copercana.
Desde o ano passado, ele garante que a cooperativa tem tido uma economia financeira de 25% em relação ao que pagaria se estivesse utilizando eletricidade nos moldes convencionais.
"É mais barata a negociação comprando da usina. Teoricamente a gente está comprando de quem a CPFL compra. (...) Recebo uma nota fiscal de compra da usina e informo à CPFL através da Câmara Comercializadora de Energia Elétrica o quanto adquiri. A cpfl faz a cobrança, manda a fatura normal dela, só que nessa fatura tem um desconto da energia que eu comprei da usina", explica.
Além da questão burocrática, foram necessárias adequações nos equipamentos de medicação.
"Primeiro tem que estar enquadrado dentro de uma faixa de consumo. O consumidor final não consegue, tem que ter uma demanda alta de consumo de energia. A papelada exigida é muito grande, por isso tivemos que contratar uma assessoria, que nos auxiliou junto à CCEE", diz.
Hoje, 80% do que a empresa consome vem do mercado livre de energia, devido ao que consome em sete unidades - além da matriz e de uma planta de beneficiamento de grãos em Sertãozinho, são mais cinco supermercados na região.
"20% ainda está dentro do mercado cativo porque é tudo consumo baixo, são as filiais de ferragem, de comercialização de defensivos agrícolas, o consumo é baixo, então não se consegue migrar."
O mesmo conceito também permite a doação de créditos de energia, como os angariados pelo Hospital de Câncer de Barretos por meio do projeto "Energia do Bem". Os fundos doados pelo setor sucroenergético ajudaram o centro médico a economizar R$ 1,1 milhão na conta de luz em 2016, o equivalente a 20% de todo o seu consumo.
Para cada megawatt-hora doado - que custou R$ 120 por usina participante - o hospital recebeu R$ 250. "O HC de Barretos não é um consumidor cativo da CPFL, é um consumidor livre. Ele pode estar fisicamente sendo atendido pela rede da CPFL, mas comercialmente não, eu descolo o comercial do físico", afirma Souza, gerente da Única.


Data de Publicação: 29/06/2017 às 11:20hs
Fonte: Portal G1

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