domingo, 31 de maio de 2015

Antigo costume carrega histórias de quem cavalga pela Serra da Canastra

Edição do dia 31/05/2015 31/05/2015 09h20 - Atualizado em 31/05/2015 09h20 Antigo costume carrega histórias de quem cavalga pela Serra da Canastra Nélson Araújo mostra a receita do "assobio de cobra", um prato tradicional de Minas Gerais que guarda histórias dos tropeiros ao longo das gerações. Nélson Araújo Do Globo Rural
Tem o curioso nome de "assobio de cobra" o prato matuto que o Nélson Araújo traz, na reportagem que ele fez em Minas Gerais. A vida de repórter, de vez em quando, nos leva a passear onde a gente trabalha e trabalhar onde a gente passeia. Pois foi fazendo uma cavalgada com amigos na Serra da Canastra, que o repórter experimentou o assobio de cobra e virou freguês. E agora, ele voltou para registrar o que, na verdade, é um antigo costume tropeiro. O dia vem nascendo por detrás da serra, a corredeira suspende a bruma da manhã, o sol já começa a banhar a matinha na beira do córrego. É bem nessa hora que se come o "assobio de cobra". Ou melhor, que se toma. É comida de acampamento. Basicamente, é um caldo rico, forte, engrossado com farinha de milho. Para quem dorme arranchado, fica difícil, se não impossível, contar com aquela mesa farta de frutas, chocolate, biscoitos, pão de queijo e café quentinho. O "assobio de cobra" tem o propósito de substituir tudo isso. É um prato de sustança, tipo desperta-leão, para enfrentar os desafios do dia. Dia que, na verdade, começou ontem. O endereço do cartão postal: Vale da Babilônia, Serra da Canastra, entre os municípios de Delfinópolis e São João Batista do Glória. A equipe de reportagem acompanhou, por lá, um grupo de cavalgada. Gente que quer ir montada onde o carro não chega, cingir os paredões, recortar as grotas, conhecer o que o pessoal da região chama de “suvanca” da serra. "Vir aqui descarrega, sabe? A energia que tem aqui é muito especial para mim. Eu gosto muito de estar nesse ambiente da natureza", diz a publicitária Camila de Almeida. É um grupo misto: tem estudantes; tem o filho, que já não é cavaleiro de primeira viagem; tem a mãe, profissional liberarl; tem o que faz práticas espirituais; aposentado; empresário. Perfis diferentes, mas unidos na paixão pelo cavalo. "O ar que a gente respira é diferente daqui do que o ar da cidade. E, quando a gente vai cavalgar, é uma sensação de liberdade que não existe. Se tivesse asas e a gente pudesse voar seria a mesma coisa que andar em um cavalo", conta a estudante Carina de Almeida. A volta pela "suvanca" da Serra, como diz o caboclo, cortando grota, vale e chapadão é também uma volta ao passado. Isso que hoje é um lazer e tem a graça de um passeio segue por uma trilha que, na origem, foi aberta para o trabalho. A nossa memória tende a pôr na penumbra a nossa história. Pouco tempo atrás, nos caminhos gerais, passava boi, passava boiada, e a tropa que ia ser montada. Em posição adiantada, avante ia o tropeiro que cuidava da comida dos companheiros. De cor, já sabia o roteiro de comprar criação de terreiro. Era o jeito de proteinar a boia cozida em fogo de cupinzeiro. Daí a pouco, a tropa chegava e a companheirada podia jantar. A revivência que se faz, atualmente, mantém a montada a cavalo, mas também é puxada a trator. Por ali, no lugar do peão cozinheiro avançado, vem uma carreta, conduzida para a convidativa prainha do Ribeirão. O clarão do dia já vai se apagando por detrás da serra, o ribeirão junta seu canto aos ruídos da noite e, depois de um dia tão agitado, o estômago ronca de fome. Na crônicados antigos costumes de trabalho, o tropeiro avançado já teria preparado a comida. Mas, ali, o cozinheiro também participa da cavalgada e só depois começa o preparo da boia. O Éder de Andrade é de Ibiraci, Minas também. Já teve fazenda, agora é empresário e tem uma madeireira. Além de cavalgar, o hobby dele é fazer comida para muita gente. Tanto que, no kit de cozinha ao ar livre dele, o panelão de ferro rouba a cena. É peça centenária, dessas de se encontrar em museu. Não foi o caso do dia em que a equipe de reportagem esteve no local, mas, com ela serve umas 200 pessoas. Movida a gás, fica suspensa em um suporte que ele mesmo fabricou em uma oficina de fundo de quintal. Quem gosta de fuçar, de aproveitar o que sobra na oficina, pode se inspirar nas coisas que o Éder usa para fazer o panelão do "assobio de cobra". No caso dele, para o suporte, foram usadas cantoneiras de aço de instalação elétrica. E, para a tampa, um disco de grade desterroadeira. Tirou tudo da tranqueirada que normalmente vai para o ferro velho. Com a ponta de um vergalhão, fez a alça; elo de corrente virou argola para quando, se pesada, precisar ser levada por duas pessoas. "A inspiração vem da origem da gente. Somos da roça. E o amor pela comida e pelas cavalgadas", conta Éder de Andrade. Não dá para saber exatamente como os antepassados faziam, que gosto a comida tinha. Mas, por lá, o pessoal tenta advinhar, tenta imaginar. Tendo já refogado alho e cebola em um fundo de banha de porco, Éder vem, agora, com o frango caipira. São oito frangos picados temperados só com sal. Dá uma esquentadinha e, então, vem com umas conchadas generosas de mais banha de porco. E mexe. O pessoal, de olho comprido, em volta. Lembrando que, antes, o Éder preparou um disco de arado cheinho de queijo, um canastra na chapa. De modo que não tem ninguém com o estômago nas costas, mas a fome está coçando. Frango refogado, o Éder tampa, deixa cozinhar por uns 15 minutos. Quando destampa, vem com água fervente. A carne respira, desprende sua própria gordura. Com a banha de porco se mistura. Em pouco tempo vira o caldinho amarelo que é só do franguinho caipira. Um punhadinho de cheiro verde, abafa, retira o caldo para um vinagrete com pimenta bode. E o jantar está servido. Acompanha arroz branco. Será que nos pousos dos tropeiros também tinha vinho? Ah, música, com certeza, tinha! Mais para o fundo da noite, tudo se aquieta. A carreta que serviu de restaurante, agora, tem colchões esparramados pelo piso alguém apaga a luz. E o canto da corredeira embala o sono coletivo. É quando nasce o dia que começa o preparo do "assobio de cobra". Todo mundo de pé, já, aguardando o café da manhã. Os ingredientes: sal, pimenta, farinha de milho, água do ribeirão que já está fervendo e o principal: a soca do frango que o Éder preparou no comecinho da noite. "A carne dormida na gordura dá um sabor espetacular, dá um aroma diferenciado", explica Éder de Andrade. A manteiga amarela ele retira, pois não é o caso de um prato gorduroso. E sobre a sobra da noite, vem com a água quente. Sobra proposital. Lembra? Tropeiro não ia cozinhar uma vez à noite, outra de manhã, fazia a mais para ganhar tempo na hora de sair. Sobre o caldo quente, Éder derruba o prato de farinha de milho. A ideia não é a de fazer um pirão, mas um engrossado, nem creme, nem sopa. Nossa, Éder! Que tanto de pimenta! TTudo bem misturado, ele prova, ajusta o sal e está servido o café da manhã à moda tropeira. Uns se servem no pratinho fundo, outros em potinhos, em caneca. Por que "assobio de cobra"? Ah! Isso é do tempo do “zagai”, de antes do tempo do onça, de amarrar cachorro com linguiça. Do tempo em que o homem observava a natureza e descobriu que tem cobra que pia. Lenda? O Globo Rural já até respondeu pergunta sobre o assunto, no Instituto Butantan. O biólogo Marcelo Belini explicou: como defesa, a cascavel agita o guiso; já a sucuri, a jiboia, por exemplo, emitem um sopro que lembra o assobio. Ao tomar esse caldo, para aliviar, como dizem, o quentor e o ardor da pimenta, o caboclo faz que nem a cobra. O "assobio de cobra" nos serve de prova da importância da sobra. O prato reparador do dia anterior vira o estimulante para jornada do dia que segue. Diz um ditado científico que, na natureza, nada se perde, tudo se transforma. A cultura também se recicla. Os restos dos costumes tropeiros inspiram a produção de lazer. O antigo modelo agropecuário se inclina para o turismo rural. tópicos: Economia, Minas Gerais

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