segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Com economias dependentes, Brasil e Argentina tentam superar desconfianças



Publicado em 23/12/2019 13:46

Por Lisandra Paraguassu
BRASÍLIA (Reuters) - Passados poucos dias após a posse de Alberto Fernández, o futuro das relações entre Argentina e Brasil --hoje em campos ideológicos opostos-- é uma incógnita sob muitos aspectos, mas entre empresários e diplomatas há uma certeza: amigos ou não, brasileiros e argentinos terão que engolir dissabores e trabalhar juntos dado o tamanho do comércio entre os dois países.
"Eu sempre brinco que nós chamamos os argentinos de 'hermanos' não é à toa: irmão a gente não escolhe, mas tem que aguentar", conta o consultor Welber Barral, da BMJ Consultoria --ex-secretário de comércio exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio.
A brincadeira traduz a relação de quase dependência entre Brasil e Argentina, em que se um lado espirra, o outro fica doente. A crise econômica grave no país vizinho não é causa da crise no Brasil, mas ajuda a reduzir a velocidade da recuperação econômica brasileira.
Este ano, o país vizinho importou cerca de 9 bilhões de dólares do Brasil até novembro, o menor valor desde 2005 e cerca de 37% menos do que no ano passado. Ainda assim, a Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil e o maior importador de produtos manufaturados, especialmente na área de automotivos e metalurgia, um mercado que as empresas brasileiras não têm condições de abrir mão
"A Argentina sempre foi considerada um parceiro primordial para a indústria brasileira, não só pela proximidade, mas pela complementariedade das nossas economias e pelas facilidades que foram trazidas pelo Mercosul", explica Carlos Eduardo Abijaodi, diretor de Desenvolvimento Industrial da Confederação Nacional da Indústria.
"Hoje, a interação entre nossas indústrias é essencial para as nossas exportações, tanto para o Brasil quanto para a Argentina. Existe então o interesse do setor privado dos dois países que essa relação comercial e industrial se mantenha."
Diplomatas e fontes da indústria, falando sob anonimato pela delicadeza do tema, admitem que a tensão ideológica entre os dois países na esfera política pode embaralhar a relação comercial, mas menos pelas críticas mútuas e mais pelas visões opostas em determinadas questões, especialmente relacionadas a abertura comercial, que atingem o Mercosul.
Uma das fontes ouvidas pela Reuters analisa que é natural ao novo governo argentino adotar as políticas que conhece, com uma visão mais assistencial na área social, mais intervencionista na economia e mais protecionista no comércio. Lembra que o novo governo não está "inventando dificuldades econômicas", ao contrário. Não há dúvida, no entanto, que essa nova visão terá um contraste com o pensamento econômico hoje no Brasil.
"O quanto vai ser esse contraste está ainda para ser definido. Terá consequências a partir de quanto de protecionismo a Argentina vai adotar. Isso vai ter maior ou menor influência na relação direta com o Brasil", explica a fonte, que acompanha de perto a relação entre os dois países. "E que efeito vai ter nas negociações externas do Mercosul. O novo governo pode resistir a mais acordos ou acelerar acordos."
A fonte lembra, no entanto, que a economia fragilizada na Argentina já havia feito o próprio ex-presidente Maurício Macri a adotar algumas medidas menos liberais que sua cartilha inicial, como controle do câmbio e uma resistência a uma aceleração da revisão da Tarifa Externa Comum (TEC) do Mercosul.
A postura dos argentinos no Mercosul é uma das principais preocupações do governo brasileiro, que quer tocar rapidamente em 2020 as mudanças na TEC e a confirmação do acordo comercial com a União Europeia e o Efta.
Um diplomata que acompanha as negociações no bloco lembra que a gestão interna era complicada no governo de Cristina Kirchner, que antecedeu Macri e hoje é a vice de Fernández.
"Não temos ainda como saber, mas a gestão cotidiana era bastante difícil. Pode ficar complicado se eles criarem caso para aprovar coisas de interesse do Brasil, ou com a TEC", disse.
Outro temor do governo brasileiro é a volta da demora na aprovação das licenças de importação não automática, mecanismo usado pelo governo Kirchner para controlar a saída de dólares do país e que afetava diretamente os exportadores brasileiros.
A fonte admite, no entanto, que os sinais ainda não estão claros e, por enquanto, o governo brasileiro trabalha na fase de hipóteses.
Algumas medidas anunciadas por Fernández internamente são vistas como preocupantes pela tendência mais intervencionista, mas não afetam diretamente o Brasil. E a primeira reunião do grupo gestor do Mercosul, em que as diferenças podem surgir, está marcada apenas para 18 de fevereiro do próximo ano.
Futuro embaixador de Fernández no Brasil, o empresário Daniel Scioli --que teve seu agrèment aprovado pelo Itamaraty na semana passada--, diz que a Argentina não vai exigir mudanças no acordo com a União Europeia, mas vai trabalhar junto com o Brasil e os demais países.
"A Argentina quer se abrir de forma inteligente ao mundo, para se tornar mais competitiva, mas nos abrirmos prestando muita atenção porque o efeito da política anterior foi devastador ao nosso setor industrial. Caiu em 50% a produção e fecharam 50 empresas por dia nos últimos anos", afirmou.
Scioli explica que em visita ao Brasil já conversou com o vice-presidente Hamilton Mourão sobre uma agenda comum entre os dois países.
"Vamos trabalhar em uma agenda. Estamos conversando com os investidores brasileiros na Argentina, os argentinos no Brasil, com empresários, para conseguir levar tranquilidade e confiança aos investidores", disse.
POLÍTICA
Para além da economia, um dos riscos apontados com quem lida com o comércio no dia a dia é a contaminação das negociações técnicas pela política. A má vontade do presidente brasileiro com Alberto Fernández só não deixou a situação pior entre os dois países porque o argentino desistiu de responder às provocações.
Durante a campanha eleitoral no país vizinho, Bolsonaro por diversas vezes quebrou a regra não escrita da diplomacia ao falar mal de Fernández e tentar crescer a ideia de que com sua eleição a Argentina se transformaria em uma nova Venezuela. Depois de responder uma vez, o então candidato passou a ignorar as diatribes bolsonaristas.
Recentemente, o presidente brasileiro amainou o tom, disse torcer para que a Argentina melhorasse, lembrou a interligação comercial dos dois países e chegou a dizer que Fernández seria bem-vindo se quisesse visitar o Brasil --o convite não chegou a ser formalizado.
Mas, esta semana, voltou à carga no Twitter ao criticar as recentes medidas econômicas anunciadas pelo novo governo e insinuar que os argentinos poderiam começar a migrar para o Brasil, em uma diáspora semelhante à venezuelana.
Perguntado sobre se as divergências ideológicas poderiam interferir no relacionamento comercial entre os dois países, o futuro embaixador de Fernández em Brasília negou.
"Não. Manteremos a identidade de cada governo. Há uma necessidade mútua de buscar as oportunidades, a complementação das nossas economias. Como disse o próprio presidente Bolsonaro, é o pragmatismo. E temos que respeitar a vontade popular e a institucionalidade de ambos os lados", defendeu.
De acordo com uma fonte da área empresarial, o recado que tem sido dado pela ala econômica e diplomática do governo é de que se desconsidere esses arroubos presidenciais porque, na prática, o governo continuará negociando para que os interesses brasileiros sejam atendidos.
"Claramente o começo não foi dos melhores. Outros presidentes tinham um relacionamento mais fluido, mas um relacionamento com a Argentina é inevitável e não se consegue alterar essa realidade", disse Welber Barral, acrescentando que as áreas técnicas certamente continuarão trabalhando como sempre, sem levar em conta as crises políticas. "Também não acho que Fernández vá ser um problema."
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Fonte: Reuters


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